Eu li “A Vegetariana” na versão da D.Quixote do grupo Leya (Portugal) em janeiro deste ano. No primeiro momento, a história parecia fantasiosa e assustadora. Mas muito verdadeira. Na contracapa, tem uma crítica que depois ficou ressoando e me fez trazer esse livro pra cá:
“O que é mais assustador sobre as fantasias pós-humanas da protagonista é o facto de elas parecerem uma alternativa razoável ao mundo repressivo em que vivem todos os que a rodeiam”. Times Literary Supplement.
O livro
“A Vegetariana” é um livro da autora sul-coreana Han Kang e conta a história de Yeong-hye, uma mulher comum que, após um sonho perturbador, decide parar de comer carne. Essa decisão aparentemente simples desencadeou um colapso dentro da família, revelando traumas, abusos e camadas profundas de repressão emocional, social e de gênero. A narrativa é dividida em três partes, cada uma com um narrador diferente, e acompanha a progressiva desconexão de Yeong-hye com o mundo ao seu redor (ou a sua profunda conexão com o que passa a acreditar e sentir).
Han Kang recebeu o prêmio Nobel de Literatura em 2024, e foi reconhecida pela sua “intensa prosa poética que confronta traumas históricos e expõe a fragilidade da vida humana”. E é essa fragilidade da vida e das hierarquias sociais impostas, entre humano, animal e vegetal, que faz a história ir ganhando força, reflexões, vida e morte.
O ato de não comer mais carne é interpretado como um movimento de rebelião e loucura por seu marido e família e leva a uma espiral de eventos que expõem a brutalidade das expectativas sociais, a rigidez do patriarcado e a incapacidade de compreensão de suas relações próximas. À medida que Yeong-hye se retira cada vez mais do mundo humano, desenvolvendo uma obsessão por ser uma planta e uma recusa progressiva de comida, o livro explora muitos temas de forma profunda e poética, como a autonomia, corpo, sanidade, violência, desejo e erotismo.
“Como se estivesse a protestar contra qualquer coisa. O seu olhar é sombrio e insistente”.
O tema
Hoje, a proposta é olhar o livro pelo tema do bem-estar (ou pela falta dele).
Para essa conversa, vou trazer uma ideia de bem-estar compilada de muitas definições, autores e conceitos que já pesquisei trabalhando com esse fenômeno em empresas: estado de equilíbrio e funcionamento que inclui a qualidade de vida geral de um indivíduo. Vai além da ausência de doença, abrangendo dimensões físicas, mentais, emocionais, sociais e espirituais. Pode reunir também a capacidade de sentir satisfação e propósito, lidar com os desafios da vida e cultivar relacionamentos significativos, resultando em uma sensação de contentamento e realização pessoal.
Como não tenho formação em psicologia ou áreas da saúde, a ideia NÃO é trazer pontos técnicos, médicos, dar qualquer diagnóstico, muito menos trazer soluções para questões particulares ou de personagens. Alguns objetivos de trazer esse tema e da conexão com o livro, muito atual com a realidade da nossa sociedade, são:
conversar sobre a importância da qualidade de vida sem que a gente precise falar necessariamente de nós, em primeira pessoa;
refletir com uma personagem tão complexa e poética sobre momentos de virada e de impacto da vida e as consequências desses movimentos;
relembrar da história de “A Vegetariana” com o que ela pode dizer do nosso cotidiano, das nossas relações, nossas escolhas e sobre a nossa sensação de contentamento;
ampliar pontos, considerações e pensamentos sobre as muitas dimensões que podemos considerar para estar bem.
Pela amplitude do tema e profundidade da obra, é possível considerar muitos assuntos que impactam o bem-estar e que são vivenciados durante a história.
Repressão e controle
A protagonista vive um casamento em que as agressões vão aparecendo logo no início, nas descrições da primeira página, e com o passar da história, ganham formas viscerais. É possível acompanhar um marido que a trata de maneira submissa, funcional e violenta. Sua decisão de parar de comer carne mostra um grande ato de ruptura com esse papel e causa mudanças importantes no dia-a-dia do casal.
A recusa à carne me trouxe um símbolo de resistência, como um gesto corporal contra a cultura do controle, do que já era dado como certo, especialmente do corpo feminino. Isso pode evidenciar um desejo de autonomia e preservação emocional, aquilo em que a personagem passa a acreditar e a buscar, que faz sentido apenas para ela.
Desumanização
Em mais de uma passagem do livro, a família de Yeong-hye tenta "corrigir" seu comportamento com violência física e verbal. A agressividade não está “apenas” na forma de tratar Yeong-hye e não considerá-la uma pessoa capaz, mas em palavras e atos que tiram dela o suporte de seus relacionamentos, sua autonomia, a possibilidade de contentamento e realização do que acredita que a fará bem. É possível sentir dor, repulsa, incômodo, desconforto em muitos momentos, mesmo sem ter vivido nada parecido.
Silenciamento
Ao longo do livro, Yeong-hye começa a se afastar do mundo, recusando não apenas a carne, mas também a linguagem, a sociedade e a comida de forma geral. Cada vez mais dentro da sua realidade, a personagem vai demonstrando questões de saúde, sendo levada a um hospital psiquiátrico.
E nessa trajetória, em muitas passadas, foi possível sentir uma forma radical de se libertar de uma realidade insuportável. Levei como uma crítica sobre o custo emocional de viver sob normas opressoras e o quanto ser silenciada é violento para sua própria autopercepção.
Linguagem
Yeong-hye usa frases curtas e diretas, quando se comunica verbalmente, ou praticamente não fala. Já seu corpo e seus atos são meios poderosos de expressão. A linguagem no sentido mais amplo da personagem é ponto chave para ir se adentrando na complexidade dos acontecimentos. O abandono da oralidade me trouxe uma representação de reconexão com o essencial ao mesmo tempo que uma resposta a tanto domínio. Dizer pra que (e pra quem), se ela não era ouvida? Dizer como, se ela não era compreendida?
Os dados
Como "A Vegetariana" é uma obra de ficção, traz temas universalmente relevantes para discussões de subjetividades e complexidades humanas. Não é difícil encontrar matérias atuais sobre (a falta de) bem-estar no Brasil. Trouxe para cá alguns exemplos:
Conforme matéria do G1, “Crise de saúde mental: Brasil tem maior número de afastamentos por ansiedade e depressão em 10 anos”. Ou seja, o bem-estar e a saúde mental tem cada vez mais profundas implicações para pessoas e para sociedade, e têm um viés muito relevante sobre o impacto nas famílias e no mundo do trabalho. Os números são altos, os efeitos são incontáveis e existe uma busca de como viver essa nova realidade.
Segundo o IPSOS, “a maior parte dos brasileiros diz pensar sobre seu bem-estar mental com frequência (75%) e acredita que ele é tão importante quanto o bem-estar físico (73%). Os dados fazem parte do levantamento “World Mental Health Day 2023”, realizado pela Ipsos em 31 países. Os números mostram, no geral, que o brasileiro se sente mais estressado que a média global das nações pesquisadas (58%).”
Segundo matéria da CNN, “90% dos profissionais brasileiros consideraram trocar de emprego por motivos de saúde mental, satisfação ou felicidade no trabalho, de acordo com pesquisa da Infojobs.” E completa que “a pesquisa realizada em setembro deste ano indica que 56% dos entrevistados não estão felizes no atual ambiente de trabalho e 62% não se sentem psicologicamente seguros em suas empresas.”
E como a vida, a história narrada em “A Vegetariana” vai nos apontando que o silenciamento e a imposição da família, do trabalho, da sociedade e de tantas estruturas que estamos inseridos, podem levar a caminhos autodestrutivos e isoladores. O livro sublinha a dor que pode surgir quando a identidade e a voz de alguém são sistematicamente negadas. Dá para pensar em integridade psicológica e sinais de sofrimento em ações cotidianas e marcantes tanto da personagem como dessas matérias. Dá pra sentir e pensar em pessoas que podem estar com essa ausência de satisfação ao nosso lado, buscando serem ouvidas e acolhidas.
Além disso, o livro me serviu como uma crítica às formas de organização (sociais, de convenção, de símbolos, do trabalho, etc.) que não permitem desvios da norma. Com ilustrações das consequências de uma sociedade que valoriza a conformidade acima da saúde mental e da individualidade, a incapacidade dos personagens de se conectar genuinamente com Yeong-hye, em vez de tentar controlá-la, reflete uma anomalia mais ampla em lidar com aqueles que não se encaixam ou que estão em algum momento precisando de atenção e intencionalidade genuína.
Destaques
O texto tem cenas cotidianas descritas de forma intensa e palavras que marcam. Separei alguns trechos para reforçar o tema da conversa de hoje:
Logo no início do livro, ela relata: “Mastigava algo que parecia tão real, mas não poderia ser, nunca. O meu rosto, a expressão dos meus olhos… era, sem sombra de dúvida, o meu rosto, mas nunca o tinha visto. Ou não, não era meu, mas parecia-me tão familiar… nada fazia sentido.”
Yeong‑hye inicia a recusa à carne como um gesto em busca de algum alívio, uma tentativa de se distanciar de um mal-estar interno que ela só consegue expressar nos sonhos.
Esses sonhos podem sinalizar a ruptura de Yeong-hye com o mundo em que ela estava inserida, ao mesmo tempo que apresenta sua realidade de forma profunda. É um reflexo da ausência do seu bem-estar atual ou uma busca por um novo ponto de contato. É um momento que marca o início de sua recusa corporal e psicológica do mundo violento ao seu redor, como uma tentativa desesperada de restaurar seu equilíbrio e sentidos.
“Agora só posso confiar nos meus seios. Gosto deles, não podem matar nada. Mão, pé, língua, olhar - tudo armas, sei que nada está a salvo delas. Mas os meus seios, não.”
A protagonista revela o terror que invade seus sonhos e perturba seu bem-estar físico e mental, mas mostra seu lado interno que a protege desses sentimentos confusos e conflitantes. Traz sensações de encontros e desencontros.
Quando o marido de Yeong-hye é o narrador, ele evidencia suas perspectivas do relacionamento que não contribui com o bem-estar da personagem principal.
"Antes da minha mulher ter se tornado vegetariana, sempre pensei nela como alguém que não tinha rigorosamente nada de especial. Para dizer a verdade, quando nos conhecemos, nem sequer me senti atraído por ela."
Temos também o olhar da irmã, que tenta cuidar da Yeong-hye e manter a própria vida funcional, e entra em suas reflexões e pensamentos. O peso de todas as expectativas sociais, familiares e afetivas recai também sobre ela. E então se questiona:
““Quando é que isto começou?”, perguntava, por vezes, a si própria nesses momentos. “Não: quando é que tudo começou a desmoronar-se?””
“Não haveria nada que ela pudesse ter feito para impedir tudo aquilo?”
A quebra emocional parece não estar só em Yeong-hye, mas em todos os que a cercam.
E se ampliar a conversa, também estará próxima de nós?
Normalizamos estar “mais ou menos” bem?
“A Vegetariana” pode ser lido como uma poderosa história sobre opressão, especialmente para mulheres. O livro expõe como, em determinadas culturas e contextos familiares, a tentativa de preservar a sua verdade pode ser confundida com loucura ou como em atos radicais merecem atenção e cuidado. A questão do próprio conceito de normalidade e como a sociedade reage quando alguém ousa desafiá-la segue latejando no livro.
É um texto que desafia, perturba e, acima de tudo, faz pensar. Ao mergulhar nas ações e movimentos de Yeong-hye, somos forçados a confrontar as tensões entre o indivíduo e as complexas manifestações da dor humana. Quantas vezes não nos sentimos incoerentes com nossos valores? Quantas vezes não agimos de uma forma esperada socialmente mas que nos fere por dentro? É uma leitura poderosa e perturbadora que ressoa profundamente com questões contemporâneas.
Quando explora a condição humana, o livro mergulha nas profundezas das relações, trazendo o que acontece quando um indivíduo se recusa a se conformar às normas mais básicas. É uma exploração crua da liberdade individual e a pressão da conformidade.
E é um prosa poética e impactante. Apesar do tema difícil, a escrita da autora tem uma beleza e verdade que impactam. A linguagem é concisa, mas nos traz imagens e emoções, tornando a leitura uma experiência única.
Não dá pra sair sem muitos pensamentos! Parece um pouco fantasioso, em alguns momentos, não traz respostas prontas e ainda levanta questões inquietantes sobre o corpo, o desejo, a violência (física e psicológica), protestos e fronteiras de “estar bem”. Ele nos obriga como leitor a confrontar o desconforto.
Você leu “A Vegetariana”?
Tinha refletido por esses pontos de vista?
Quero saber mais como o livro chegou pra você…
Até a próxima.
E boas leituras!
Ainda não li, mas depois da sua resenha já coloquei na lista para leitura!!!