Maternidades universais e particulares
"...porque todas as mulheres escondem... um diário proibido".
Aproveitei o embalo do mês das mães para me inspirar no primeiro tema: Maternidades! E o livro escolhido para iniciar as conversas do Bem-estar Literário: O Caderno Proibido da Alba de Céspede.
Foi uma leitura recente por conta do Clube de Palavras que estou participando, da querida Ana Suy, que expandiu e ampliou muito a visão, a leitura, a compreensão e as reflexões, com os diferentes depoimentos das pessoas participantes do clube, além das aulas instigantes, profundas e sensíveis da Ana.
Então vamos de “O Caderno Proibido” e algumas reflexões sobre as maternidades.
Sobre o livro
"O Caderno Proibido" é um romance publicado em 1952 pela escritora Alba de Céspedes, nascida na Itália em 1911. O livro acompanha a vida de Valeria, uma mulher de 43 anos, casada, mãe de dois filhos adultos, que decide comprar um caderno para escrever um diário. O caderno proibido é escondido de sua família e, através dessa escrita, Valeria começa a refletir profundamente sobre sua identidade, seus sentimentos reprimidos, sua rotina familiar e sua função como mulher, esposa e mãe.
A obra é escrita em primeira pessoa, em formato de diário. E de tão íntimo, passamos a sofrer, torcer, contrariar, argumentar e conversar com a Valeria. As palavras potentes da autora nos levam a viver com a personagem, na sua casa, nos seus intervalos para se aprofundar nos acontecimentos e refletir sobre a vida (dela e a nossa).
Logo no início, Valeria escreve: “desde que comecei a tomar nota dos acontecimentos de cada dia, conservo-os na memória e tento perceber o porque é que ocorreram”.
E as coisas se transformam quando começamos a pensar nos porquês...
Destaques e anotações
Vários trechos do livro são potentes e reflexivos. A escrita em primeira pessoa, muitas vezes, pode nos confundir entre narrador e nossos pensamentos. São frases e desabafos, passagens da vida de uma mulher e seus dilemas tão atuais, mesmo que escritos na década de 50.
Para essa conversa de hoje, separei algumas das minhas anotações conectadas à maternidade e outros assuntos que permeiam o cuidado.
“Às vezes, penso que bastaria me deixarem em paz, que eu pudesse me estender numa cama, sem fazer nada, dormir durante dias inteiros, para que eu voltasse a viver.”
Dá pra sentir nesse trecho o profundo esgotamento emocional e físico de Valeria, não dá? Ela se mostra consumida pelas exigências da família e pelos papeis que desempenha: esposa, mãe, responsável pelas atividades do lar, pelo cuidado de todos, profissional em um escritório, amiga e filha. O desejo pelo descanso pode representar também uma reconexão consigo mesma, “para que voltasse a viver”, já que ela nos traz suas subjetividades apagadas por essa rotina tão intensa, solitária e apertada de ser mulher e mãe naquela época.
E hoje? Não é difícil encontrar relatos, notícias e postagens sobre bem-estar, ou a falta dele. Entre os afastamentos por questões de saúde mental em 2024, as mulheres foram as mais afetadas. Dados do Ministério da Previdência Social mostram que elas representaram 63,8% das licenças concedidas por transtornos mentais no ano. A frase que de vez em quando circula por aí e que fica ecoando é: e quem cuida de quem cuida?
Eu li a edição portuguesa de O Caderno Proibido, publicada pela Alfaguara, e logo nas primeiras páginas Valeria reforça novamente seu cansaço:
“Ninguém parecia perceber que uma semana de descanso em agosto não podia impedir-me de estar cansada em outubro. Se às vezes digo: ‘Não me sinto bem’, Michele e os miúdos ficam brevemente num silêncio respeitoso e embaraçado. Depois, levanto-me, volto a fazer o que me compete. Ninguém se mexe para me ajudar...’”
A invisibilidade do trabalho doméstico, o esgotamento emocional e a busca por identidade e autonomia feminina são passagens que nos voltam para tantos temas da vida dela e de tantas pessoas que conhecemos, de mulheres que não descansam.
“Na verdade, sempre pertenci a ele, aos miúdos; agora, pelo contrário, por vezes parece-me estar ligada a todos e não pertencer a ninguém.”
Quantas vezes não ligamos nossa identidade a algo ou alguém. Sou fulana de tal empresa, esposa de tal pessoa. Sou a mãe da Mel e do Tom.
Uma vez ouvi uma provocação da Ana Paula Padrão questionando mulheres sobre o que dá alegria a elas. E respostas como: quando meu filho faz tal coisa ou quando a família está reunida são comuns de ouvir. Mas o que fazemos pra nós, para além dos outros? O que fazemos exclusivamente para nosso prazer? E para descansar?
O Caderno Proibido me fez seguir questionando a maternidade e o que era (ou ainda é) esperado da mulher nesse papel. Hoje falamos sobre não querer ser mãe, sobre diferentes maternidades, sobre parentalidades, sobre maternidade independente e a dimensão política do cuidado. Contudo, os números ainda nos contam o peso que tem sobre a mulher.
O tema e o trabalho
Maternidade como imposição
A maternidade contada no livro apresenta as diversas ambivalências sobre o maternar. Afinal, quem somos depois que nos tornamos mãe?
Nasce uma mãe, dizem que nasce uma culpa. Mas o que nasce mesmo é uma nova pessoa. E para essa nova descoberta, só tempo, questionamentos, reflexões, erros, acertos, vivência, silêncio, conversas… e individualidade para nos entender.
No meu caso, depois de ser mãe da Mel e mãe do Tom, segui buscando respostas e acolhendo ser mãe da Mel sendo mãe do Tom. E mãe do Tom sendo mãe da Mel. E sendo mãe do Tom e mãe da Mel. E a Iandara, sendo mãe. E a mãe, sendo a Iandara. E daí desdobrando para tantas outras eus: esposa, filha, amiga, irmã, tia, profissional, líder… e mãe.
Já Valeria, que não se sente celebrada como pessoa e faz parte de uma geração de transição na sua família, se mostra sendo útil e necessária nas coisas que faz em casa, mas não é vista ou valorizada individualmente. Pelo menos não se sente assim. Seus filhos crescem e vão viver suas vidas, e ela começa a notar que sua dedicação não gera reconhecimento, ou que as expectativas criadas não se encaixam nesses novos formatos de maternidade.
Uma passagem importante do livro é quando Valeria se dá conta de que a maternidade não a protegeu da solidão. (“Terei filhos para que cuidem de mim na velhice” - alguém já ouviu isso por aí?). Ao contrário: a ilusão de ser indispensável a deixou prisioneira de um papel que agora já não serve mais a ninguém, nem a ela mesma.
"[...] É como se o amor de mãe fosse um trabalho concluído, e agora eu estivesse de mãos vazias, mas ainda presa à função."
Além disso, seu marido a chama de mamãe. E ela escreve: “Ao reler o que escrevi ontem, acabo me perguntando se não comecei a mudar de índole a partir do dia em que meu marido, de brincadeira, passou a me chamar de ‘mamãe’. No início gostei muito, porque assim me sentia a única adulta em casa, a única que já soubesse tudo da vida. [...] Mas agora compreendo que foi um erro: ele era a única pessoa para a qual eu era Valeria.”.
A mãe que sabe tudo. A mãe que deixa de ser mulher.
Trabalho invisível do cuidado
Valeria não descansa. Vive entre o trabalho no escritório e as funções da casa. Não demonstra prazeres, sonhos, desejos… para além de algumas narrativas e situações que ela conta no decorrer do diário, e para não dar spoilers, não vou colocar aqui.
Esse trabalho incessante a impede de refletir, de sonhar, de simplesmente existir. Por isso, o caderno torna-se seu único espaço íntimo, onde ela pode respirar e, paradoxalmente, perder horas de escrita para criar e relatar sua vida, muitas vezes deixando de dormir pra isso.
Ela também é responsável pela cena que descreve? Ela aumenta ou fantasia algumas passagens? Acredito que sim. Contudo, para seguir embalada na reflexão do livro com a maternidade, me permiti recortar e enfatizar as passagens com esse olhar. Certamente, a leitura do livro de Alba nos permite muitas conversas, para além dessa.
O corpo exausto
Inspirada pela leitura do O Caderno Proibido, ouvi o Podcast “É tudo culpa da Cultura: o corpo exausto” com outros olhos. O podcast do Michel Alcoforado traz discussões muito interessantes sobre as influências da cultura, do corpo e do mercado de trabalho. E pela minha leitura, muita conexão com a maternidade.
Culpa, corpo, exaustão e cultura… e a mãe. “Nasce uma mãe nasce uma culpa”. “Você já voltou ao peso de antes de ter filho?” Mãe e exaustão na mesma frase não é difícil de encontrar. E o que a cultura espera e diz sobre ser mãe!?
Pensei em muitas coisas enquanto ouvi, anotei outras tantas e fiz muitas conexões com O Caderno Proibido. Primeiro, na forma que o episódio chegou pra mim, porque o antropólogo que traz a sua pesquisa começa a estudar o tema por influência, observação e preocupação com a sua própria mãe. Segundo, porque traz a discussão sobre a doença do trabalho e a relação dessa pessoa no seu dia-a-dia, com as tarefas simples, como escovar os dentes e lavar a louça.
E o quanto da economia do cuidado, pautada por mulheres e em muitos casos mães, têm impacto relevante nessa “conta” maternidade, individualidade e carreira. O livro inclusive traz um dilema forte para Valeria, a frente do seu tempo por exercer um trabalho fora de casa, mas desvalorizado, pois “só” trabalha pois o marido não consegue dar o sustento financeiro suficiente para o lar, e ainda sim, não tem ajuda de ninguém da família nas atividades domésticas.
Hoje se fala da saúde mental e da pessoa adoecida e afastada do ambiente de trabalho, por questões da sua função, e pouco se fala desse impacto nas relações familiares. E o corpo exausto dentro das casas, das famílias, das relações? É o mesmo corpo, é a mesma pessoa.
Mês comercial das mães em 2025, mês que escrevo esse texto, e seguimos com dados como: 50% das mães são demitidas após retorno da licença maternidade e 77% das mulheres começaram a empreender após a maternidade (e não tem direito a licença). Além de inúmeros exemplos de: “com quem vai ficar seu filho?” em entrevista de emprego.
Precisamos caminhar nos temas que permeiam a maternidade e o mercado de trabalho, para além da licença estendida e dos brindes oferecidos nesses dias. Precisamos falar das maternidades, da cultura e dos corpos exaustos. Obrigada pelas reflexões, Michel!
Prazer em ler
Ler O Caderno Proibido me proporciou reflexões sobre a maternidade, transformações e questões sociais sobre o cuidado. Mesmo com toda submissão e ausência de espaço como mulher, inclusive físico para além da cozinha, Valeria manteve por meses seu caderno, trabalhava fora e outras coisas que fizeram dela uma pessoa também transgressora do que era esperado.
Com recortes específicos e muitas camadas, hoje podemos ser mulheres mais livres e autônomas. Contudo, quantas coisas ainda fazemos sem querer fazer? Quantas vezes não pensamos na roupa que vamos sair considerando possíveis assédios? Quantas vezes em um ambiente de trabalho corporativo não nos masculinizamos para sermos ouvidas e respeitadas? E outros tantos momentos que nos colocam em situação de desconforto e adequação, de personagem e às vezes figurante...
Obrigada Ana Suy por me apresentar a Alba de Cespede, uma visão do feminino, da potência da escrita e da leitura de livros que transformam. Em uma de suas aulas no Clube de Palavras, Ana diz: “o leitor também é um coautor”. Trouxe pra cá uma visão da Valeria e seu caderno com o olhar da maternidade.
Ainda citando a Ana: “nos sentimos bem quando lemos, porque temos uma ideia de estar próximos do humano”. E quanto de humano tem nas muitas maternidades… e quanto de humano tem nas narrativas e no encontrar-se com e no outro.
Histórias que transformam
Você já leu o Caderno Proibido? O que achou?
Conhecia a Alba de Céspedes? Na edição que eu li, tem depoimentos da Annie Ernaux e da Elena Ferrante sobre o quanto ela foi inspiradora.
Fez sentido por aí essa conexão e reflexões com a maternidade?
Vai ser um prazer continuar essa conversa nos comentários e interações.
Termino com outros livros, personagens mãe e filho, maternidades e seus dilemas para seguir inspirando a leitura:
Pequena coreografia do adeus - Aline Bei
A filha perdida - Elena Ferrante
Tudo é rio - Carla Madeira
A vida mentirosa dos adultos - Elena Ferrante
Lutas e metamorfoses de uma mulher - Édouard Louis
Sobre a terra somos belos por um instante - Ocean Vuong
A vergonha - Annie Ernaux
Quais livros você acrescentaria?
Obrigada.
Até a próxima.
E boas leituras!
Adorei! Comecei a ler o caderno proibido!
E acrescentaria o “ensaios de despedidas” da Elisama Santos